Renascimento

A vida é pautada pelo compasso do quotidiano. Poucos são aqueles que esperam que, de um momento para o outro, o ritmo possa ser brutalmente interrompido. O Acidente Vascular Cerebral (AVC), a maior causa de morte em Portugal, aparece como um ladrão na noite, à procura de roubar a liberdade e a autonomia, outrora dadas como adquiridas.

− Que idade tens, Raul?

−10, 20, 30, 40 e 50 é a minha idade. Se não for assim, já não consigo lá ir. Tive de arranjar este sistema. É assim que o meu cérebro funciona.

As vítimas de AVC vivem o desamparo, a dor, a resistência numa luta inglória, mas sempre movidas pelo amor e responsabilidade dos seus cuidadores. Cada caso é um caso, mas há que desenredar a complexidade da experiência humana que envolve o AVC.

«Só 30% dos sobreviventes de AVC têm o tratamento recomendado», assim foi dito por uma jornalista no Jornal Expresso.

https://expresso.pt/sociedade/saude/2024-04-04-So-30-dos-sobreviventes-de-AVC-tem-o-tratamento-recomendado-e-ha-11-circuitos-diferentes-no-SNS-c465a23a

Investigações revelam que, no Sistema Nacional de Saúde (SNS), em Portugal, existem abordagens díspares para a reabilitação das vítimas de AVC, devido à variedade de métodos de tratamento para cada paciente. Apesar de haver muitos caminhos no sentido da reabilitação, somente alguns deles são realmente eficazes. Esta situação ressalta o desequilíbrio e a ineficácia do sistema, beneficiando uns com tratamentos superiores e de resultado célere em detrimento de outros.

Acredita-se que, após sair do coma, a recuperação seja imediata. Mas não é bem assim.

− Achamos que acorda, e está tudo bem, e começa a falar, […]. O despertar do Raul foi abrir os olhos.

Ao acordar, o que antes era um corpo vibrante e autónomo torna-se refém de si mesmo. A mão não responde, a fala confunde-se, os pensamentos dispersam-se e a sensação de impotência é avassaladora. As vítimas de AVC encontram-se imersas numa realidade estranha e desoladora. Não é apenas o corpo que está ferido, mas também a alma. O caminho a percorrer é uma incógnita.

Do lado da vítima estão os cuidadores, muitas vezes familiares próximos. Enfrentam um desafio que não escolheram, mas que lhes foi imposto pelas circunstâncias. Esses cuidadores improvisados assumem o papel central na vida das vítimas de AVC, desempenhando tarefas para as quais não têm orientação ou apoio, muitas vezes sem ajuda de assistentes sociais. O desamparo dos cuidadores é silencioso e cresce à medida que a exaustão se instala, desfazendo as suas vidas pessoais. Sentem-se abandonados.

E o que se espera do sistema de saúde?

De que forma a sociedade pode contribuir?

O sistema de saúde, apesar dos seus esforços, muitas vezes não consegue oferecer o apoio necessário. As instituições estão sobrecarregadas e os serviços de reabilitação são insuficientes ou inacessíveis para muitos. É um vazio que abre um buraco no tecido social. A sociedade tende a esquecer-se destas pessoas, enclausuradas nas suas casas, presas à sua condição, desbravando lutas de batalhas invisíveis, onde os heróis nunca são lembrados.

Resta-lhes a luta pela reabilitação.

Sendo a recuperação um processo longo e doloroso, constatam-se progressos notáveis para uns e uma realidade estagnada e frustrante para outros. As sessões de fisioterapia, a terapia da fala, os exercícios cognitivos são o centro da sua vida. Cada pequeno avanço é uma vitória do seu herói, mas a cada retrocesso, o golpe é duro.

Sozinhos precisam de aprender a lidar com o desamparo emocional.

Além do físico, o esgotamento emocional corrói lentamente. Os sentimentos de frustração, raiva e tristeza acompanham tanto as vítimas como os cuidadores.

− Tu não estás cansado?

− Não. Tudo o que seja para melhorar, eu faço.

As relações familiares são testadas até ao limite. A maioria dos cuidadores sente-se sozinho, sem apoio psicológico e carrega um peso que parece impossível de suportar. É como se tentasse segurar uma tempestade num copo de água, com as ondas de emoção prestes a transbordar a qualquer momento.

Posto isto, na teia complexa da vida, o AVC é um nó difícil de desatar.

As vítimas e os cuidadores são heróis silenciosos. Lutam contra a corrente num mar de desafios. É fundamental que a sociedade reconheça e valorize este combate, que ofereça mais apoio e compreensão. Afinal, o desamparo pode ser mitigado com empatia, recursos adequados e uma rede de suporte sólida. Só assim poderemos transformar o desânimo em esperança e, eventualmente, em recuperação significativa e duradoura, de forma, a que a qualidade de vida seja restabelecida e o futuro possa ser encarado com otimismo.

Nota: Os pequenos diálogos são baseados em testemunhos reais.

https://www.instagram.com/reel/C8UsmmnoI8M/?igsh=anI5NXNtczVvNDBh

 

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