Os
verões com a minha avó materna eram uma azáfama. O entusiamo ditava os dias que
antecediam a partida.
Os meus
amigos não compreendiam como conseguia passar dois meses de verão, sozinha, com
ela. Ali reinava a alegria e brincadeira. Tinha amigos alentejanos e, quando
chegava a altura das festas, havia bailarico durante uma semana.
O cheiro que sentia quando estava a poucos
quilómetros da vila permanece guardado até hoje, na minha memória. Belas
recordações das viagens.
A minha avó
enviuvou cedo e, raramente vinha a Lisboa. Íamos nós visitá-la e, nas férias, os
meus pais permitiam que ficasse com ela até o ano letivo começar.
Naquela
altura, a chave ficava na porta, um convite às vizinhas para entrarem, mas eu,
rebelde, mais do que agora, fechava a porta à chave. Fora apanhada umas poucas
de vezes de cuecas, porque a vizinha entrava sem avisar. Ficava furiosa, mas no
final até ria com a situação.
− Joana, ainda tem pão? Estou a fazer
umas sopas[1] para o jantar e deixei
acabar.
Surpreendida pela vizinha, só tinha
tempo de resmonear:
− Boa noite, Catarina. Podia ter batido
à porta!
A avó, receosa pois conhecia bem a neta
que tinha, vinha disparada da cozinha, pronta a justificar o meu comentário.
− Já sabes como são as cachopas. Sempre
com a resposta na ponta da língua.
Divertia-me bastante com os olhares de
reprovação das suas amigas, embora todas gostassem de mim. Sempre fui afável e
cumprimentava-as com grande alarido e carinho. Ao contrário de outros
adolescentes, bem-educada, não tinha problema em acompanhá-las à mercearia mais
próxima ou ao café central da vila.
As manhãs começavam cedo, com a avó a chamar-me para a ajudar
na cozinha ou no quintal. Preparávamos pães caseiros, colhíamos legumes frescos
e cuidávamos dos animais. Dedicávamos as tardes aos passeios pela vila, nas
visitas à mercearia, ocasiões muito especiais. A avó fazia questão que a
acompanhasse e, eu,
orgulhosa ao seu lado, observava-a. Com vaidade, apresentava-me a todos os seus
conhecidos. Adorava pavonear-se pelas ruas com a sua neta mais velha. Casa sim, casa não, os
estabelecimentos de comércio vendiam de tudo. Na mesma mercearia tinham carne, artigos
decorativos, produtos de higiene e até ouro.
No verão, os dias quentes e secos
contrastavam com as noites maravilhosas. O céu estrelado revelava estrelas bem
definidas que o pontilhavam. A casa da avó, que é hoje a minha segunda casa,
tinha muito por onde apreciar a noite luminosa. Ou íamos para o quintal com uma
vista extraordinária para a Serra da Estrela, ou sentávamo-nos à porta, em
cadeiras pintadas à mão, feitas de madeira artesanal com assentos de palha, a
comer gelados, feitos por mim no dia anterior. Na festa, que se realizava no
fundo da rua da Corredoura, as velhotas pegavam nas suas cadeirinhas e
juntavam-se aos festeiros. Não perdiam este evento por nada, desde que
assistissem sentadas. Riam em uníssono e falavam da vida umas das outras, naturais
e igualmente encantadoras. Hoje em dia, a festa da vila em honra da Nossa
Senhora dos Remédios mantém-se, mas perdeu a graça, além de ser noutro local, fica
perto do recinto da tourada.
Uma das recordações mais marcantes, pela
negativa, foi a matança do porco. Embora fosse uma tradição profundamente
enraizada, uma lembrança dolorosa. Nunca aceitei este ritual. Sempre amiga dos
animais, tinha afeição pelos porcos que a avó criava desde o tempo em que o avô
ainda estava entre nós. Eu cuidava deles com carinho, dava-lhes de comer, fazia-lhes
festas e espojava-me[2] com eles na furda[3]. Os porcos são sensíveis e
sociáveis, muito mais do que certas pessoas. Gostam de brincar, de receber
mimos e criam laços. Quando me apercebia do seu destino, fugia para não ouvir
os seus grunhidos angustiantes.
Nem todas as memórias são felizes e, com o tempo,
percebi o seu impacto na minha vida. A vida simples no campo, as tradições, e, sobretudo,
o amor incondicional da minha avó moldaram quem sou hoje. Os verões passados
com ela são presentes bem guardados no coração.
Atualmente, o cheiro mudou, as festas perderam brilho
e algumas tradições desapareceram. Restam as memórias que me fazem sorrir, lembrando
a beleza das coisas simples e a sabedoria da minha avó que me ensinou a
valorizar a felicidade.
[1] Sopas de pão duro,
amolecido no leite
[2] Deitar-se ou rolar-se
no chão
[3] Casa rústica e tosca (abrigo para os porcos) no Alentejo
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